Crónica de Jorge C Ferreira | Encontros e Desencontros

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira
Encontros e Desencontros

 

Chamava-lhe manhã porque era o seu corpo a primeira coisa que via quando acordava. Era como uma visão. Algo que não sabia explicar. Era naquele corpo adormecido e em profundo descanso, que lavava os olhos. Parecia que tinha um sorriso de deleite. Seriam recordações da festa da noite, que os tinha embriagado de loucura? Seria desejo de acordar para matar desejos? O mais provável era ser só um esgar da felicidade que lhe corria no corpo. Veias de um sangue especial. Sangue a cavalgar a aventura de ser corpo adorado.

Tudo isto não passava de um ritual que alimentava tudo o que se sonhava que acontecesse. Acabava por ser sempre ele a acordá-la com beijos que lhe espalhava pelo corpo. Era ela que tinha de se levantar primeiro, era a primeira a sair. Era um novo dia que começava a dois. Por vezes continuavam a madrugada, um encanto que vestiam antes da roupa. Mais alguns beijos e o duche que esperava já a contar os minutos de atraso. Ele descansava mais um pouco. Quando ela aparecia embrulhada no seu roupão branco, era tempo de mais um beijo e de ele se levantar e ir tomar duche. Doía-lhe saber que só a veria de novo no fim do dia.

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Tomava o duche, acordava mais uma vez e passava pelo corpo a espuma de um sabonete que adorava. Abusava de ter a água a cair-lhe pelo corpo. Precisava de acordar para uma outra vida. Ela vinha despedir-se dele. Um até logo delicioso. Uma voz única. Já havia muito vapor de água na casa de banho. Era altura de fechar a água e acabar com aquele saboroso duche. Vestiu o seu roupão negro. E quando olhou para o espelho viu escrito a batom no vidro: Até logo meu querido, beijos e os lábios dela marcados a vermelho como assinatura.

Era altura de ele sair de casa. A manhã tinha sido divina como seria o dia? Ainda tantas horas até ser noite outra vez.

As noites começavam num café, onde os dois se encontravam, ao fim da tarde, depois de se terem falado várias vezes. Não havia ainda telemóveis, as comunicações eram deficientes. Era o tempo dos troncas e das broncas. Depois jantar no Bairro Alto, finalmente um copo num bar e a noite seguia para casa a horas tardias. Os corpos juntavam-se de novo.

Um dia a vida desencontrou-me daqueles apaixonados. Caminhos que a vida tece e desentrelaça. Durante muito tempo não soube mais nada deles. Até que um Amigo comum que encontrei num café que não frequentava há muito tempo me contou esta história que aqui vos deixo:

Um dia acordaram de manhã à mesma hora, não houve tempo para ele a admirar e acordar com beijos. Há quem diga que de tanto se adorarem, se desencontraram. Há quem diga que se esgotou o que tinham a viver. Muitas foram as razões que me aduziram e deixaram estupefacto.

Nunca mais foram vistos. Consta que viajaram para continentes diferentes. Na verdade, nada sei acerca deles. Espero que estejam bem. Beijos meus.

«Uma história que começou tão bonita e acaba assim. Não gosto destas tuas manias.»

«Eu sei que tu gostas de finais bonitos. Mas isto não são telenovelas.»

Respondo.

«Agora estás a provocar-me, mas eu não estou para te responder à letra.»

De novo Isaurinda, e vai, vira-me as costas e nem uma palavra, nem um gesto.»

 

Jorge C Ferreira Dezembro/2024(459)

 


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n. 1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor publicou as seguintes obras: A Volta à Vida à Volta do Mundo (Crónicas de Viagem) Editora Poética (2019) Desaguo numa Imensa Sombra (Poesia) Editora Poética (2020) 60 Poemas mais um (Poesia) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.I) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.II) Editora Poética (2024) Participação em Antologias: A Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence (Poesia) Antologia Luso-Francófona Editora Mosaico das Palavras (2018) Poetas do Reencontro (Poesia) Antologia Galaico-Lusa Editora Punto Rojo (2019) A Norte do Futuro (Poesia) Homenagem poética a Paul Celan Editora Poética (2020) Sou Tu Quando Sou Eu Homenagem À Amizade (Poesia) Editora Poética (2021) Água Silêncio e Sede Homenagem Poética a Maria Judite Carvalho (Poesia) Editora Poética (2021) Ser Mulher IV As Palavras (Poesia) Editora Mosaico das Palavras (2021) Nem Sempre Os Pinheiros São Verdes II Editora Poética (2022) Representado na Revista Pauta nº9 com um Poema (2022)

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16 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Encontros e Desencontros”

  1. Regina Conde

    Os poetas têm a arte de nos deixarem viver mais uma vida. Os personagens não saberemos se aconteceram. Agora já existem. O amor avido de se entregarem, como se vivessem um dentro do outro, debaixo da mesma pele. A liberdade de serem os próprios deixou de existir. Quem sabe procuraram a necessidade da autenticidade. Certamente nunca deixaram de se amar. Terá ficado a saudade saudável. Gosto muito da crónica “Encontros e Desencontros”. A gentileza das tuas belíssimas palavras. Abraço imenso meu Amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Que belo comentário. Uma leitura muito própria. A generosidade das palavras. A minha enorme gratidão. Abraço grande.

  2. Maria Luiza Caetano Caetano

    Uma história apaixonante, que o seu olhar poético nos oferece e emociona, um amor ardente que viveram e foram felizes.
    Eu quero acreditar, que continuam a viver apaixonadamente, num outro cantinho do mundo. O amor é uma coisa maravilhosa e o poeta sabe tão bem escrever sobre este nobre sentimento. Adorei tanta beleza.
    Abraço grande, querido escritor.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza, minha Amiga. Brilhante o seu comentário. Um brilho que nos ilumina. Sempre presente, sempre generosa. Sempre reconfortante let o que escreve. A minha enorme gratidão. Abraço enorme.

  3. Eulália Coutinho Pereira

    Bela e comovente história de amor. Amor, paixão, poesia. A vida de encontros e desencontros. Sonho e realidade unidos pela beleza do amor. Noites que se transformam em dia. Amores que chegam ao fim, mas permanecem na memória, para sempre.
    Obrigada Poeta do amor, pela beleza da sua escrita.
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália, minha Amiga. É sempre um gosto imenso ler os seus comentários. Saber da forma como me lê. Só me resta agradecer muito. A minha imensa gratidão. Abraço grande.

  4. Filomena Geraldes

    meu querido cronista.
    quanta propensão para delineares
    histórias de amor…
    de febris paixões.
    de intensos desejos.
    pouco interessa se terminam mal.
    enquanto se vivem são sensoriais e estonteantes.
    tens uma vocação inata para te
    apossares de sentimentos e emoções flamejantes.
    ninguém, senão tu, para narrares
    todos os preciosos detalhes de
    uma relação fogosa.

    folha de diário…
    ainda tenho as madrugadas de
    cotovias embuidas em mim
    os despertares velados e os risos
    em surdina aquecidos em banho-maria.
    o sabor no palato a leite de creme.
    um encosto de gestos aparafusados.
    impressos na pele. a lacre
    o não saber como sair do sono e
    acordar em lençóis de fino algodão
    de barras debruadas em ponto-pé-
    -de-jasmim.
    o corpo húmido e amornado como o
    video embaciado pelo calor do forno.
    o sentir que despojados acenderiamos luzes da alma
    e o dia despertaria quase
    espantado. desconcertado. enleado.
    as mãos tão cheias. tão capazes.
    tão aflitas de se terem.
    tão entrelaçadas entre si.
    a vontade de libertar murmúrios.
    sussurros.
    as roupas esquecidas.desobrigadas.
    os indícios das suculências.
    a gustação perfumada dos afluentes…
    e isso foi tão longe.
    tão lá longe…
    no entanto, jamais esqueci.
    como foi possível, um dia, ter amado tanto assim?
    autora desconhecida.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena, querida poetisa. Sempre tão belo o que escreves. O comentário fwito Poema. A vida feita sonho. É uma alegria ler aqui as tuas palavras. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.

  5. Maria Matos

    Maria Matos , 10 Dezembro 2024
    Que gostoso retornar a estas crónicas.
    Esta é para mim maravilhosa.
    Que grande amor, que enquanto vivido foi de uma magia e paixão incríveis.
    Mas até estes grandes amores acabam…
    Há um começo e o fim é inesperado!
    Mas foi infinito enquanto durou!
    Adorei! Obrigada poeta.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Matos. Que bom estat aqui, neste nosso espaço, espaço para todos. Que bonito o seu comentário. Só me resta agradecer de novo. A minha enorme gratidão. Abraço grande.

  6. Branca Maria Ruas

    Há amores que, de tão intensos, não aguentam viver para sempre.
    Talvez por receio de enfrentar o desgaste acabam antes do tempo. Muitas vezes de forma repentina e inesperada.
    Mas quem vive intensamente, ama perdidamente, E viver em estado de paixão é um risco que alguns não resistem em correr.
    Afinal, nada na vida é garantido e, tal como disse o poeta Vinicius, “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria, minha grande Amiga. É tão bom ler as tuas sábias palavras. O amor é uma coisa complicada. A Paixão pode matar. É brilhante a forma com abordas estes temas. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.

  7. Claudina Silva

    Tão linda a tua crónica. O Amor, sempre o amor a dar sentido à vida! Parabéns Poeta Jorge C Ferreira. Amei!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Claudina, minha Amiga. A tua presença é sempre imprescindível e reconfortante. Viva o Amor. A minha enorme gratidão. Abraço grande

  8. Lénea Bispo

    Linda e comovente história . Era difícil aquele casal não ser amado pelos amigos e , por todos, respeitado o seu amor que parecia inesgotável. Mas a vida, por vezes, troca- nos as voltas e acaba aquilo que parecia indestrutível para sempre. E os finais felizes não existem como nos contos de encantar. Histórias de vida que terminam sem ” Happy- End”
    Gostei muito como sempre
    Beijinho, poeta amigo .

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Lénea, minha Amiga. É sempre com uma grande alegria que encontro aqui os teus belos comentários. Uma leitura perfeita. A assertiva resposta. A arte da generosidade. A minha imensa gratidão. Abraço grande.

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